Tatuagem


Gabriel Moura

Conhecia uma garota que tinha o corpo tatuado dos pés à cabeça. O topo do couro cabeludo era raspado e nele havia um mapa, como se o crânio fosse o globo terrestre; as mãos tinham inscrições, de poemas e de letras de músicas; os pés eram como raízes; os seios também eram marcados, um deles com estrelas, o outro, com planetas; ao redor do umbigo, um botão de rosa abria; nas costas havia um enorme dragão em tinta preta, de asas abertas que se expandiam pelos braços. Um arqueólogo adoraria vê-la nua, era como observar as linhas de Nazca do céu. Transamos somente uma vez, e foi a experiência mais singular que tive na cama.

Têmis apareceu morta há duas semanas. O corpo, inconfundível, flutuava nas margens do Abaiara, encontrado por dois garotos que pescavam. Foi notícia no jornal, e segundo o repórter não havia sinais de violência. O pai, advogado do maior escritório da cidade, exigiu justiça, convencido de que se tratava de um homicídio. Na minha opinião a tese de assassinato parecia a mais convincente.

Sem que o pai soubesse, contratei um detetive particular. Seu nome era Wilson, um cinquentão barrigudo, de barba por fazer, cuja propaganda estava colada nas paradas de ônibus. Paguei em dinheiro, adiantado, uma parte. O resto seria dado ao fim da investigação. Forneci a ele o nome completo da vítima, as circunstâncias sabidas da morte, detalhes sobre a aparência de Têmis e traços de sua personalidade. Wilson me assegurou que era o melhor do ramo em todo o interior do Rio Grande do Sul e que em uma semana já teria informações.

***

Estávamos na cama, depois do gozo, deitados, no calor. Era verão, o ventilador estragado, os lençóis ensopados. Têmis acendeu a luz de cabeceira, onde havia uma pilha de livros, e pegou o maço de cigarros. Percebi que a tatuagem logo abaixo do olho direito não era uma lágrima, mas a conta de um colar, decerto feita de cristal ou vidro. Uma pérola, talvez?

- O que foi? - ela indagou.

- Estou mapeando as suas tatuagens - eu disse, tocando a bochecha da garota.

- Gosta?

- Acho admirável. Já escolhi as minhas favoritas.
Ela sorriu, depois tragou o cigarro e soprou a fumaça para o alto. Cruzou as pernas nuas.

- Quais são?

A rosa. Um botão abre-se ao redor do umbigo. As pétalas são delineadas por tinta preta, e preenchidas com tons de vermelho. O universo. O seio direito é repleto de estrelas, com algumas constelações visíveis. Traços e pontos negros, e uma pintura em aquarela por cima, que vai do azul escuro ao avermelhado. O seio esquerdo, por sua vez, é um retrato do sistema solar, os planetas em órbita, como se o bico fosse o Sol. O dragão. Em preto e branco, cobre as costas de Têmis. Está, ele mesmo, de costas. A cauda do animal desce até o cóccix. As asas abrem-se, e parte delas segue pelos ombros e braços. As escamas são um trabalho que deve ter levado dias, senão meses. O mapa. É como se o globo terrestre estivesse retratado fielmente na cabeça, os continentes e os oceanos, as pequenas ilhas. Alguns poucos territórios estão delineados em suas fronteiras, sendo eles os lugares já visitados por Têmis. São eles a Argentina, a Colômbia, o Peru, Portugal, Espanha, Vietnã e Tailândia. Além do Brasil, é claro.

- Não gosta das minhas pernas? - ela indagou.

- É uma ideia original tatuar dois troncos de árvore, mas sendo bem sincero, não acho muito bonito. Esteticamente falando.

Ela riu, apagou o cigarro no cinzeiro e me deu um beijo quente. Eu acariciei a via láctea, passei a língua pelo Sol. Ela gemeu baixinho e recomeçamos.

***

- Descobri onde ela esteve na noite anterior à morte - disse Wilson, sentado na cadeira do escritório. Ele mantinha os pés sobre a mesa, como aqueles detetives que vemos em filmes. - A sua amiga foi a uma festa em Porto Alegre. Esteve lá com outras duas garotas. Parece que uma era a namorada. Entraram no local aproximadamente às onze horas da noite. Têmis foi embora sozinha, perto das duas da manhã.

- Então a última vez que a viram foi pela madrugada.

- Sim. Ela saiu da festa e entrou em um bar, próximo dali. O dono do boteco me disse que a viu chorando, e que ela pediu uma garrafa de cerveja. Que ela ficou no local até as três da manhã. Ele mostrou uma gravação. É possível ver Têmis sentada, bebendo sozinha.

- E depois?

- Saiu dali e caminhou pela avenida Independência. Andou sozinha por um tempo, em direção ao centro da cidade. Depois, caminhou até a rodoviária.

- Ela pegou um ônibus durante a madrugada?

- Não. Aguardou a primeira viagem, às sete da manhã.

- E a autópsia? Você teve acesso?

- A conclusão foi morte por afogamento.

- Como alguém se mata desta forma?

- Colocando pedras nos bolsos. Não sei. Use a criatividade.

***

A última vez em que Têmis e eu nos encontramos foi no aniversário de um amigo em comum. Fazia um ano e meio desde que eu dormira na casa dela, e falávamos eventualmente pelas redes sociais. A conversa foi natural, sem qualquer espécie de clima estranho. Ela disse que iria começar a faculdade na capital, e então mostrou as novas tatuagens, os novos países que visitara na Ásia e na Europa, além do Egito, Senegal e Moçambique. Havia, também, uma nova ilha, entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Têmis contou a história:

- Atlântida, dizem, era um continente, e as pessoas viviam lá em meio a tecnologias inimagináveis. Até que de um dia para o outro afundaram no oceano, tragados pelas águas.

- Um terremoto?

- Talvez. Há lendas que falam de um meteoro. Pode ter sido punição divina, quem sabe? Eram tão avançados para a época...

- E desapareceram sem deixar vestígios?

- Como se fosse mágica.

- Você visitou muitos países no último ano - eu falei, olhando para o mapa.

Ela sorriu, passou a mão na cabeça nua e bebeu um gole da cerveja.

***

Fui no enterro. Estavam o pai, a madrasta, a namorada, amigos que tínhamos em comum e demais familiares. Uma garota em especial chorava muito. Os amigos tentavam consolá-la sem sucesso.

***

- O que você gosta mais em mim, além das tatuagens?

- O sorriso - eu disse, cruzando as pernas.

- Péssima resposta. Muito clichê. Escolha outra coisa. E não vale dizer a boca, os olhos ou as orelhas.

Eu acariciava a rosa, fazendo círculos em torno do umbigo. Ela acendeu outro cigarro.

- O que eu mais gosto em você é a forma como você faz amor - eu disse.

Têmis gargalhou.

- Está apaixonado? - indagou, soprando a fumaça.

***

Paguei a última parcela ao detetive, em dinheiro. Era um dia frio, escuro. Eu já estava convencido da hipótese de suicídio.

- Novas informações - ele disse. - Ia ligar para falar a respeito, mas como você apareceu...

- Não tenho mais interesse. Já é suficiente saber que foi por vontade própria, que não foi morta nem estuprada por algum bandido.

- Ela estava com câncer - disse Wilson.

- Câncer?

- Sim. Espalhou por todo o corpo. Já havia atingido o cérebro. Falei por telefone com a namorada. Bastava conversar com ela, é uma pessoa muito acessível. Desculpe, achei que você deveria saber. Um caso simples, no fim das contas. Pelo fato de ela ter a cabeça raspada a maioria das pessoas não se deu conta.

Saí do escritório um pouco zonzo. Caminhei pela avenida principal, tropicando na calçada irregular, depois atravessei praça, rumando em direção às águas do Abaiara. Já era fim de tarde. Dois garotos pescavam. O Sol baixava avermelhado no horizonte, escondendo-se atrás das águas.

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Gabriel Moura

E-mail: gabrielmouraescritor@gmail.com

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